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SOBRE O PEQUENO NICOLAU....CADA NICOLAU DO MUNDO

  • Foto do escritor: Tânia Ferreira
    Tânia Ferreira
  • 14 de ago. de 2018
  • 9 min de leitura

CADA  NICOLAU DO MUNDO                                                                     

Tânia Ferreira[1] Vou tentar extrair um aspecto que o filme O Pequeno Nicolau[2] nos permite tomar em solidariedade de estrutura com a psicanálise.O cinema, como o concebe Alain Badiou[3] (2004), seria não apenas uma arte de figuras do mundo exterior ou do tempo e do espaço, mas fundamentalmente “uma arte das grandes figuras da humanidade em ação, um tipo de cena universal da ação. São formas fortes, encarnadas, dos grandes valores que se discutem em um dado momento” (BADIOU, 2004, p. 34).Em O Pequeno Nicola, num jogo de proximidade com a realidade conserva-se, entretanto, na ficção, o olhar e o corpo infantil, a gestualidade própria da criança, seu ser de mistério e enigma, seu não saber frente ao que o Outro quer dela “o que ser quando crescer”, frente aos  enigmas do nascimento, da vida, de seu frágil lugar no campo do Outro que, em seu pensamento, pode se esvair num triz, com a ameaça de um outro que tomaria seu lugar, seus brinquedos, seu amor...Estes enigmas da vida que fazem questão para as crianças, Freud já nos havia indicado como elas lidam com eles: Diz Freud[4]: “As crianças tecem suas teorias”...Nicolau e as outras crianças vão tecendo as suas...Digno de nota são os efeitos da  palavra dos adultos sobre as crianças, o sentido particular que tem sobre elas e para elas...Vimos como as crianças tomam em sua referência a palavra e vão, por associação, construindo sua fantasia como recurso frente ao real do que constitui para ela o desejo do outro,,, O pequeno polegar solto na floresta e Nicolau, num ato de identificação, toma a gentil oferta de um passeio na floresta, como repetição da história de ser abandonado lá...Estas e outras passagens vão desenhando a leitura que cada criança faz do mundo segundo o que lhe é ofertado pela cultura... Entre olhares, gestos e silêncios que Nicolau e seus colegas não podem traduzir em palavras, sua infância vai sendo rasgada e ele é introduzido  na estrangeira intimidade dos adultos, onde não é poupado, assim como não são milhares de crianças que ele retrata. Nicolau e seus amigos podem dizer entre eles, transmitir o que pensam e sabem, mas curiosamente,  nenhum adulto é colocado em posição de escuta....Não é justamente  isso mesmo que acontece com várias crianças?A riqueza da escuta do cineasta, dando voz às crianças, colocando mais em relevo seu saber, suas saídas inventivas, seus malabarismos no campo do Outro – mesmo daqueles que são seus agentes de cuidado, mantém com a psicanálise, uma solidariedade de estrutura. O que o filme demonstra em ato – ai faz enlace com a psicanálise – é que uma vez fazendo oferta de palavra à criança, Nicolau, Alceu, Eudes, Clotário, Godofredo,  vão podendo dizer, podendo se situar, se apreender no mundo...O que gostaria de colocar em relevo é que, as diferentes formas interpretativas tentam explicar o que é a infância em suas especificidades biológicas, psicossociais, pedagógicas. As concepções de infância são múltiplas e variadas, mas algo permanece como indiscutível em todas elas: a compreensão da infância como um tempo de incompletude, de inacabado, em relação à completude da vida adulta. Historicamente a ideia de que a infância é um tempo de imaturidade, de carência, de falta, vai inscrevê-la como a um tempo vazio de responsabilidades, colocando a criança como aquela incapaz de compreender e principalmente, incapaz de saber, de falar, sendo por isso mesmo, falada pelo outroExemplo disso é o caso de Bernardo: Diz a reportagem:“Bernardo Boldrini, 11 anos, encontrado morto na última segunda-feira, chegou a procurar o Ministério Público por conta própria pedindo para não morar mais com o pai e a madrasta. E indicou duas famílias com as quais gostaria de ficar. Em janeiro, o menino esteve no MP de Três Passos, no Rio Grande do Sul, e relatou detalhes de sua rotina, marcada pela indiferença e pelo desamor na casa em que vivia. O pai, o médico Leandro Boldrini, 38 anos, a madrasta, a enfermeira Graciele Ugulini, 32, e uma terceira pessoa estão presos, acusados de participação na morte da criança.

A negligência afetiva em relação a Bernardo chegou ao conhecimento do MP em meados de novembro. Na ocasião, um expediente foi instaurado para apurar o caso. A promotora da Infância e da Juventude de Três Passos, Dinamárcia Maciel de Oliveira, pediu informações a órgãos da rede de proteção, como o Conselho Tutelar e a escola em que o menino estudava, e fez levantamentos sobre parentes que poderiam assumir a guarda do menino. Mas O juiz da Vara da Infância e da Juventude do Fórum de Três Passos, Fernando Vieira dos Santos, 34 anos, chorou ao lembrar que o caso do menino passou pelas mãos dele no processo movido pelo Ministério Público do município. O garoto pediu ajuda ao Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, órgão ligado à prefeitura, e a queixa chegou ao MP, que a transformou em um processo. A ação acabou na mesa de Santos, que intimou as partes. Como não havia registro de violência física, o magistrado optou por tentar preservar os laços familiares, suspendendo o processo por 60 dias para dar chance de uma reaproximação.

Contudo, a palavra de Bernardo não foi considerada....Bernardo tinha um déficit...amoroso, protetivo...Este caso é um caso ensinante...Ele interpela os agentes de cuidado sobre o destino que se dá à palavra da criança, à sua assinatura, ao seu destino .... Bernardo tentou fazer o seu próprio projeto de proteção, sua medida protetiva, mas não deu....Pois para nós a criança não é a autoridade....O adolescente não é autoridade.Afinal, a autoridade é dos operadores do direito ou a “autoridade científica” prepondera sobre qualquer outro poder e são os dispositivos de uma saúde oficial que passam a regular e a “resignificar” a criança e o adolescente.             A psicanálise, tomada ao rigor de sua ética, busca fazer um corte neste modo de pensar e conceber a infância e a criança.Tal como o que o cineasta vigorosamente sustenta a premissa de que para a psicanálise — a palavra da criança, bem como a posição que toma frente ao que diz,o seu saber construído, suas respostas, suas saídas inventivas - não somente são escutados e considerados, mas também faz de cada uma  um sujeito e de plenos direitos”.[5]Cada Nicolau do mundo, frente ao Outro, ao desejo do Outro, que constitui para ele um enigma, tece sua resposta. Cada Nicolau se embaraça frente a um terceiro que entra na relação de suposta “completude com a mãe”; cada Nicolau tenta se arranjar com o que tem de recursos, sintomáticos ou não, frente à angústia. Seja ela de um real em jogo na pergunta “o que o Outro quer de mim?”, seja frente à eminência da perda de um lugar no mapa do desejo dos pais, seja ela frente ao embaraço da separação ou de uma fantasia de abandono. Em qualquer uma destas circunstâncias, o sujeito responde com o desamparo. Desamparo psíquico que Freud deixa antever em vários momentos de suas elaborações e que nos ensinam sobre a clínica com crianças.  Esta é a transmissão que gostaríamos: de que a palavra e o saber da criança precisam ser não somente escutados, mas valorizados, acolhidos e tratados... [1] Psicanalista, Mestre e Doutora em Educação, Pós-Doutora em Psicologia ( Psicanálise e Cultura/UFMG)[2] Data de lançamento 2 de julho de 2010 (1h 30min )Direção: Laurent Tirard França,[3] IN: Pequeno Manual da Inestética.[4] Verificar: Sobre as Teorias Sexuais das Crianças.[5] Esta expressão de Rosine Lefort, psicanalista francesa, tem sido traduzida e conhecida como “a criança é um analisante por inteiro”.Postado por Tânia Ferreira às 06:58 Nenhum comentário: Enviar por e-mailBlogThis!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest

DO LADO DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES... o que as patologiza? De que adoecem crianças e adolescentes? Como uma criança ou um adolescente pode ser atravessado pelas infâncias e adolescências produzidas pela sociedade contemporânea?Diz a mensagem de watzapp: “Bom dia, sou mãe de um menino de 1 ano e 5 m. Quero saber se a senhora pode atendê-lo e quanto cobra. Ele tem tido crises de nervosismo, se auto agredindo, batendo em seu rosto, puxando seus cabelos, se arranhando até sangrar. Mas é bonzinho, quase nunca chora ou grita”.Como esta mãe, muitas outras desesperadas, “sem saber o que fazer”, buscam tratamento para seus filhos.Deparamo-nos ainda, no cotidiano da clínica, com a criança e a loucura. Seja a loucura de seu entorno e daqueles com os quais convive, seja a sua própria loucura.  Solidária à definição de LOBOSQUE ( 2013,p. 71) “o que chamamos de loucura será talvez o aflorar de uma singularidade irredutível, para a qual não se consegue inscrição. É excesso sem limite, vazio sem contorno, repetição sem fim” - acolhemos na escuta.Hannah Arendt (2000, p. 238) discute a responsabilidade daqueles que devem introduzir o “recém-chegado e forasteiro, nascido em um mundo já existente e que não conhece”. Afirma que a escola é a instituição que interpomos “entre o domínio privado do lar e o mundo, com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo”. Contudo, podemos interpelar, para além da escola, as mais diferentes formas que nossas crianças têm encontrado para “chegar ao mundo” e os efeitos disso sobre elas.Estamos às voltas com crianças que chegam à clínica cada vez mais precocemente muitas vezes antes ou em seu primeiro ano de vida, com intenso sofrimento psíquico.Em muitas  infâncias, as crianças são expostas às tragédias, violências e contradições. Milhares de crianças têm seus direitos violados.As informações chegam pela hipermídia para muitas crianças, feito enxurrada. Muitas crianças de 4, 6 anos, têm seus tabletes; muitas crianças de diferentes idades têm celular, acesso direto a internet, algumas têm muitos grupos de wattzapp, chats, enfim, estão “plugadas”. Muitas entram no mundo real, pelo virtual. Outras vivem só, no virtual. Num mundo “fake”, umas e outras vão abrindo trilhas....Já podemos recolher alguns efeitos disso sobre as crianças. Outros, só depois.Muitas que vivem assim, ligadas, são educadas pela angústia e para a angústia. O que deveria advir como mistério e enigma, as tragédias, atos violentos, erotização precoce, chegam rapidamente para elas.As informações e conhecimentos dos mistérios da vida dos adultos a que muitas crianças têm acesso, contribuem de alguma forma para o “encurtamento” da infância, quiçá seu desaparecimento? O que se passa com uma criança sem infância?Podemos dizer que um dos efeitos disso é a transformação de algumas crianças no que vou chamar de “seres em suspensão” que tentam se equilibrar na borda do mundo infantil e do mundo adulto, sem pertencer a nenhum deles.Outro movimento importante que vemos acontecer é o da institucionalização das crianças de todas as classes sociais. As escolas de educação infantil se multiplicam e recebem bebês e crianças de 06 meses a 06 anos, para uma permanência de quase dez horas diárias. Isso também se estende a crianças de todas as idades no ensino fundamental, ora com a escola pública ampliada, ora com as escolas integrais particulares. Sem contar as que estudam só um turno na escola regular, mas no outro turno, estão no que chamarei aqui, de escola paralela. Escola para dar conta de acompanhar os conteúdos da escola regular... Não são mais aulas particulares, mas “salinhas” de todas as matérias em cursos indicados pela própria escola onde a criança estuda. Tudo isso com o assentimento de seus cuidadores.A terceirização dos cuidados é também corriqueira na vida de crianças que estão fora da escola um turno, também de diferentes classes sociais. Em classes mais abastadas, os cuidados ficam a cargo de um profissional do ramo, por vezes tratado como parte da família, outras vezes, orientado a não criar uma relação e afeto com a criança para a criança “não sofrer quando perder”, pois a impermanência destes adultos está muito presente nos discursos das crianças em tratamento.Sabemos dos efeitos desta institucionalização precoce e contínua. Lacan[1] já nos advertia dos efeitos sobre uma criança, da falta de um “interesse particularizado”. Poderíamos seguir inventariando múltiplas questões que nos indicam quem são, como vivem, de que padecem, o que dizem as crianças de nossos dias. Estas Notasevocam muitas e muitas outras situações e experiências a que o leitor poderá aventar. Importa que estejamos atentos ao ineditismo de cada criança que se apresente a nós, seja na escola, nas instituições, nos espaços públicos das cidades, na clínica.Podemos seguir abrindo estas questões com o dizer de Freud, insistindo neste dizer... Nos últimos anos de suas elaborações, em meio ao mal-estar da civilização, Freud faz uma crítica à educação que podemos tanto situar na escola, quanto na família: O fato de ocultar dos jovens o papel que a sexualidade desempenhará em suas vidas não é o único defeito imputável à educação de hoje. Pois ela também peca ao não prepará-los para a agressividade da qual estão destinados a serem objetos. Deixando que a juventude vá ao encontro da vida com uma orientação psicológica tão falsa, a educação não se comporta de modo diferente ao do caso de se cogitar em equipar pessoas para uma expedição polar com trajes de verão e mapas de lagos italianos. Torna-se evidente, nesse fato, que está fazendo mal uso das exigências éticas ( Freud, 1974,  p. 158, nota 1). BH JULHO 2016

[1] Refiro-me a “Nota sobre a Criança” IN: OUTROS ESCRITOS.

 
 
 

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Psicanálise em ato vivo.

por Tânia Ferreira.

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