top of page
  • Foto do escritorTânia Ferreira

As sessões on-line com os pré-adolescentes e adolescentes em tempos de pandemia: o pandemônio

....Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. (Mia Couto)



PAREDES DE PAPEL


Tanto quanto as crianças que, por vezes se esgueiram na cadeira, falando baixo para os pais não ouvirem, os (as) pré-adolescentes lutam pelo sigilo.


Quando respondo a demanda dos pais, de atendimentos de seus filhos (as), pergunto se há na casa um local onde se possa ter sigilo para as sessões, que é muito importante a privacidade, o que significa, enfim.


Não obstante, às vezes, mesmo em local reservado, como no próprio quarto, não é raro o sujeito se sentir desconfortável ou receoso de falar, ser ouvido e ficar exposto.


Uma adolescente descreve bem o que outros tentam expressar: as paredes em casa são de papel, por isso prefere aguardar passar a pandemia para voltar ao consultório. Outra implora a analista que vá ao consultório atendê-la, pois “não aguenta mais”, mas não se sente à vontade para fazer as sessões online.


Nesse cenário, alguns vão construindo saídas inventivas: um pede a chave do carro a um dos pais e vai fazer a sessão lá, mesmo com a internet falhando um pouco; outra, inicia as sessões por chamada de vídeo e, ao longo da sessão, usa o zapp e escreve o que teme mais ser escutado; outra, vai para dentro do closet e fecha a porta, e, outros ainda, fazem toda a sessão por escrito no zapp – o que nos coloca questões.


Outros (as) porém, fazem questão de incluir a mãe ou o pai, dizendo claramente que querem que eles ouçam, abrindo e fechando portas do local onde se passa a sessão, como lhes convêm..


Assim, as sessões vão acontecendo. Vamos nos havendo com o possível, o contingente

e o impossível ....da vida e desse momento obscuro.


Nem um pouco Standard:


Tem início a sessão por chamada de vídeo, mas eis que só se vê um teto branco e uma voz dizendo que desligou a câmera. Logo a analista é avisada. “Estou no banheiro, por isso desliguei a câmera. Espera aí ”....e se põe a falar.

Assim permanece, durante alguns minutos.


Mas num triz, surge, escondida por trás de uma cortina de cabelos molhados, em frente ao espelho. Enquanto escova o cabelo, fala sobre suas aulas e atividades escolares excessivas on-line, sobre os trabalhos escolares dela, remotos (sem controle)[1] e dos pais em home office; de suas inúmeras dificuldades de acompanhar o ritmo da escola; do curso que está fazendo para aprender as performances de sua banda predileta – e, em voz cada vez mais baixa, e da música de fundo cada vez mais alta - da crise de choro que tivera na noite do dia anterior....


Logo tem na mão uma escova elétrica para “ajeitar a franja” - avisa. Fala, mas não pode escutar a analista e nem ser escutada por quem está lá fora, enquanto seca e ondula o cabelo. É preciso aguardar.


Inusitadamente, inicia sua maquiagem “que não pode parecer maquiagem”....A base usada como “corretivo” das olheiras de quem não dorme bem, o gloss. Está pronta.

A sessão então, segue no quarto, com a música alta.


Se tudo passa pela imagem, “preparar para a self do dia ”frente à analista, torna-se uma questão de nosso trabalho sobre o “peso” do olhar do Outro. Seu jugo.


Em outra circunstância, está na hora da sessão. Recebo a chamada de vídeo no horário marcado. Eis que surge um corpo em frenéticos movimentos.


Tik tok tem sido a saída de muitos pré e alguns adolescentes durante a quarentena. Vídeos e mais vídeos curtos são acessados em série e as performances decoradas, também em poucos minutos.... Os movimentos aprendidos no dia são repetidos durante a sessão, com um dos fones em um ouvido. O outro, livre para ouvir a analista....Tudo ao mesmo tempo.


Acolho, por alguns minutos. Difícil torna-se passar dos passos rápidos, decorados, à palavra. Mas eis que os movimentos vão dando lugar à palavra sobre os sonhos “cabulosos”, as queixas constantes dos pais por ele (a) passar muitas horas no quarto, ficar demais no celular e estudar pouco.

São falas presentes em muitas análises. Cada um dando uma cor e um tom, um sentido a essas falas, é bom lembrar.


“Num eterno domingo”, como descreveu uma adolescente, alguns se debatem com as demandas escolares e familiares que não conseguem responder à contento, e o solitário cotidiano sem rua, sem escola, sem colegas e o que é pior, sem amigos e sem ficantes por perto. O domingo que era dia de ficar em casa, se estende e se prolonga nos outros dias da semana.


É justamente essa solidão que eles tentam amenizar nas redes sociais....São capturados nas redes e tudo pára: as tarefas escolares que “são excessivas”, os cuidados com o quarto, com a casa, com o próprio corpo.


Mas não são todos os pré-adolescentes e adolescentes que arrumam tais saídas.


Alguns provocam conflitos homéricos e tudo vira “um pandemônio” quando “abandonam hábitos”: tirar o pijama, arrumar o quarto, tirar a louça da mesa que ele mesmo usa, cuidar do corpo ou dos cabelos, escovar os dentes ou até se alimentar. Segundo eles, “nada faz sentido”, “está tudo sem sal”.


Fácil resvalar para uma leitura moral. Necessário perguntarmo-nos se se trata de abandono “de hábitos” ou de um “abandono de si” e, como muitas vezes, no vazio do desejo, um gozo mortífero se instaura, exigindo não só a escuta atenta do analista, mas intervenções com pais e a escola.

Muitas modalidades de respostas ao real em jogo na pandemia:

Se muitos encontram saídas nesse labirinto que é a pandemia, a reclusão social, pela música, literatura, redes sociais, arte - outros, ficam presos pelo pânico, ansiedade generalizada, depressão, quiçá, melancolia....


Se muitos pais e educadores, numa leitura moral, tomam essa “pasmaceira”, “paradeza” como preguiça, “enrolação”, displicência com o corpo e os objetos, a clínica nos ensina que, muitas vezes, são respostas do sujeito ao real. Sinais de angústia, de depressão e até de certa melancolia a que esse momento convoca o sujeito, segundo sua estrutura psíquica e seus recursos.


Se para um é “cômodo” não sair, enfrentar o mundo “lá fora”, para outro, o adoecer: pânico, depressão, pode funcionar como o que o mantém apartado do desejo de sair, abdicar da vida que tinha...enfim. Obviamente, nada "arquitetado", mas trabalho do inconsciente.

Para cada um é algo distinto que “pega”: “tipo” a incerteza, o vazio de futuro, o não-saber ( não sabe se terá ENEM, se estuda pois a pressão continua de todos os lados; se volta escola ou não no segundo semestre o medo ou pavor da morte; pavor de ser transmissor de vírus e matar alguém; de estar só; de conviver em família; de cada hora estar na casa de um dos pais; de não ter como sair, de se afastar dos amigos, engordar ou emagrecer demais; de ter perdido a rotina que gostava, seu ritmo de vida; até não querer viver mais.


Essa é a orientação do analista, no passo de sua função: escutar e considerar o modo como cada sujeito responde, a “envoltura formal do sintoma”, se há ou ou não uma travessia da angústia, que pontes construir, sob transferência, para essa travessia....


Se para um é o tik tok, para outro, as vezes é o tic, o “toc” - diques para a angústia.


O desafio do analista tem sido, pois, não só transmitir que toda leitura moral tem de ser subtraída, mas também estar atento à particularidade das manifestações clínicas de UM sujeito no PARA TODOS desse estado de coisas mortíferas, além de protocolos e medidas preventivas. Se todos estamos submetidos ao real da pandemia, cada um responde por isso de modo próprio e singular.


Digno de nota é o que se passa entre o sujeito e seu corpo. Sabemos que essa relação com o corpo atravessa as relações do sujeito com o outro e consigo mesmo, e vários aspectos de sua vida social e erótica – com a pandemia impedida ou dificultada, e atravessa também, mais ainda agora, seu percurso analítico. Esse será pois, um dos nossos próximos temas.

[1] Remoto... sem controle” será tema do qual nos ocuparemos, tanto para falarmos da escola, como das atividades de trabalho de jovens e adultos.

475 visualizações4 comentários

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page