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REFLEXÕES PARA TEMPOS DE GUERRA E MORTE POR CORONAVÍRUS

  • Foto do escritor: Tânia Ferreira
    Tânia Ferreira
  • 31 de mar. de 2020
  • 5 min de leitura

”Reflexões para os tempos de guerra e morte” foi escrito por Freud nos meses de março e abril de 1915, “seis meses após o deflagrar da primeira guerra mundial” - esclarece o tradutor.

Freud segue ocupando-se do mesmo tema durante vários anos de sua vida. Quase vinte anos depois dessas reflexões, Freud escreve uma carta em resposta à pergunta dirigida a ele por Albert Einsten: “Porque a guerra”[1]?


O leitor já deve intuir, senão concluir, de imediato, a razão de retomarmos essas ”Reflexões” e o conteúdo da carta, no sentido de extrair desses escritos, uma luz para nosso obscuro tempo.


A atualidade das reflexões de Freud, impressiona. Estamos sim, em tempos de guerra e morte. Guerra contra o COVID-19 que se alastra em velocidade absurda e tem mutações que driblam a ciência a cada instante, à despeito de cientistas assumirem lugar preponderante no front, estarem exercendo sua função no mundo, empenhando todo seu esforço e investimento na busca de vacinas, de remédios e de desativar seu funcionamento de contágio, ainda sem sucesso.


As mortes se multiplicam em vários países e avassalam a humanidade de quase todo o planeta. Medo e horror se espalham, instituindo perdas, varrendo sonhos, projetos, perspectivas.


Há a guerra preventiva. A quarentena com o isolamento social, os cuidados constantes com a higienização do corpo, da moradia, dos objetos, são nossas (únicas) armas nessa guerra contra o inimigo invisível mas, absolutamente potente.

Existem muitos tentando arrancar de nós essas armas. Grupos adeptos ao (des) governo brasileiro, vão às ruas sob o imperativo “O Brasil não pode parar”. Assim, estamos em guerra para não arrancarem das nossas mãos, as precárias armas que temos: a quarentena. O que isso gera?


Há a guerra do capital X trabalho. De capitalistas, financistas e os trabalhadores. (...) ”o que gera riqueza, não é o capital, é o trabalho. A burguesia enfim percebeu que o capital imobilizado em máquinas, equipamentos, estoques e sistemas de computadores não gera riqueza”.[2] O autor prossegue dizendo que “sem o trabalho dos empregados, o capital é inútil. O que gera o acúmulo de capital é a parcela não paga sobre o trabalho humano”.


No dizer de Judith Butler [3] o “capitalismo tem seus limites” - mas os capitalistas não – diríamos.


Poderíamos nos perguntar porque as pessoas vão às ruas e às redes,]apelando para que os trabalhadores voltem ao trabalho, sabendo que milhões de vidas serão dizimadas?


Freud intitula o primeiro Ensaio das Reflexões de “ A desilusão da guerra”, deixando entrever sua perplexidade e desilusão frente à desrazão que pulsava na civilização em guerra e pergunta-se com veemência por que apesar de todas as conquistas intelectuais e científicas da cultura moderna não foi possível diminuir o ódio e a destruição entre os homens?


Butler nos adverte de que “o vírus não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com igualdade, colocando todos igualmente diante do risco de adoecer, de perder alguém próximo e de viverem um mundo marcado por uma ameaça iminente”.

Mas a desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. “O vírus não discrimina, mas nós o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo”. Diz ainda Butler:

(...) "Parece provável que passaremos a ver no próximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas são consideradas não valerem o bastante para serem salvaguardadas da morte".


Estas questões inquietaram a Freud e nos inquieta, sobremaneira. Se retomamos suas Reflexões é para interrogarmos, seguindo sua trilha, o que a psicanálise pode acrescentar e contribuir com o que se vive hoje.


Se nos deixarmos guiar pela leitura moral, nos transformamos num poço de raiva, indignação e angústia, surdos ao que está em questão. Nosso caminho há de ser outro, deixando cair toda a leitura moral, construindo a nossa, no diálogo com o texto de Freud e Lacan.


No cerne do discurso de Freud, está a pulsão de morte, que se torna pulsão destrutiva quando voltada para o exterior, para o outro, o estranho e pode levar o ser humano a preservar “sua própria vida, por assim dizer, destruindo a vida alheia” ( p. 254).


O segundo Ensaio do texto, Freud intitula, "Nossa atitude para com a morte" .Há ali pontos absolutamente atuais. Para Freud, se nas sociedades modernas há - como nos assegura Butler sobre a nossa sociedade – a ausência de luto em relação à morte de outrem, isso tem como consequência a queda cada vez mais forte da transmissão simbólica da lei, que tornou o humano um ser social e sociável, corroborando, assim, para ascensão da barbárie em suas mais variadas vestes.


A psicanálise sabe que não se pode erradicar o mal, mas contribui para que cada sujeito não fique desavisado da “parte obscura” que o habita e esteja atento e vigilante para não verter essas sombras em ato - pois o preço desse tipo de ato é ser lançado a um gozo mortífero que o permite, inclusive, ser indiferente à morte do outro. Daí nossa oferta da palavra e a escuta atenta, ainda que hoje, num novo setting.


Freud havia nos advertido também acerca de dois aspectos sobre os quais não vamos nos ater agora, mas se faz necessário lembrar.


O primeiro diz respeito ao que chamou ´As Exceções”[4]. Freud nos permite compreender porque algumas pessoas dizem que “já renunciaram e sofreram bastante e têm direito de serem poupados de quaisquer outras exigências. Não se submeterão mais a qualquer necessidade desagradável, pois são exceções” (p. 353).


Ele prossegue dizendo que para essas pessoas, dessa reivindicação surge uma convicção de que “uma providência especial vela por ele, protegendo-o de quaisquer sacrifícios penosos dessa natureza”.


Longe de julgar tais pessoas, ele interroga a razão de agirem assim, querendo privilégios em relação aos outros e conclui que se deve a sofrimentos e perturbações dolorosas vividas em algum momento da vida.

Comportando-se como o personagem de Shakespeare, o sujeito acredita que a vida lhe deve reparação pela sua dor ou pelo que não lhe foi dado, “ e farei tudo para consegui-la. Tenho o direito de ser exceção, de desprezar os escrúpulos pelos quais os outros se deixam tolher” (p. 355).


Essa leitura de Freud nos permite lançar luz sobre aqueles que acham que a vida deve seguir normal, “voltar” ao normal, com todos os privilégios que reivindica, mesmo que isso custe o risco de doença e a desproteção de outros e muitos, quiçá, a morte.


Outro aspecto que será apenas lembrado aqui e que teremos oportunidade de tratar em outros momentos, concerne à relação do sujeito com a falta, segundo a estrutura psíquica de cada um.


Lacan aborda a questão da falta como um dos pontos centrais em torno do qual gravitam o trabalho conceitual da psicanálise, desde a relação do sujeito com o objeto.


Movido pelo “horror” de que algo falta ou pode vir a faltar, o sujeito é capaz de abdicar de seu saber sobre os perigos desse tempo de guerras, tanto quanto lançar o outro ao perigo para que nada lhe falte.


Para concluir, vou reportar-me ao texto de Freud, escrito no mesmo ano: “Transitoriedade”[5]. Freud assim o finaliza: “Caso renunciemos a tudo que for perdido, o próprio luto também enfraquece e então, nossa libido torna-se novamente livre, pois ainda somos jovens e cheios de vida para substituir os objetos perdidos por objetos possíveis, preciosos ou mais preciosos ainda” (p. 224).

Com ele, reiteramos nossa aposta: “Reconstruiremos tudo o que a guerra destruí(u)r, talvez com fundamentos mais sólidos e mais duráveis do que antes” (p. 224), sobretudo, de humanidade.

[1] Escrito em 1932 e publicado em 1933. [2] FILHO, Wilson Ramos. Doutor em direito, Prof, da UFPR. IN: Redes sociais. [3]BUTLER, Judith. Sobre a covid-19: o capitalismo tem seus limites”. IN: www.ihu.unisinos.br


[4] Ver: Freud, S. Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Analítico” . Edição standard das Obras Completas de S. Freud, 1976.


[5] Freud, S. Transitoriedade. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Arte, Literatura e os artistas. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 1ª reimpressão. Tradução de Ernani Chaves.

****Agradeço a fina leitura e contribuições do Psicanalista Crasso Parente

 
 
 

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Psicanálise em ato vivo.

por Tânia Ferreira.

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