MINHA CASA, MINHA VIDA
- Tânia Ferreira
- 27 de mar. de 2020
- 5 min de leitura
“ O homem encontra sua casa
em um ponto situado no Outro,
mais além da imagem de que
estamos feitos e esse lugar
representa a ausência na qual
nos encontramos” (Jacques Lacan)
Houve um tempo em que escrevi sobre os “irresidentes”[1] – referindo-me aos meninos (as) e adolescentes que fazia da rua seu local de “moradia” e subsistência.
Escrevi[2] também sobre as pessoas que vivem em favelas, aglomerados, dizendo que ali, não havia um “dentro e fora” , casa e rua. Que há entre esses espaços na favela, uma relação de continuidade: casarua... Políciais e bandidos entram e saem das casas como se fossem um só espaço. Seria preciso criar uma nova topologia, a partir de várias transformações estruturais.
Algum tempo depois, fui me dando conta de que muitas crianças e adolescentes, filhos de pais divorciados e/ou de famílias recompostas, de outras classes sociais – média e alta – também poderiam ser pensados como “irresidentes”, posto que eles se referem à “casa do pai” ou “casa da mãe”, sem, contudo, terem a “sua casa”, ou sentirem-se em casa, mesmo escutando dos pais que eles “têm duas casas”. Muitos, quando muito, têm um quarto na casa de cada um dos pais, onde se isolam, sob protestos.
Mas hoje, em tempos de quarentena, para além destes a quem me referi a pouco e daqueles que estão se sentindo “protegidos” e “acolhidos em casa” vou me ater àqueles – crianças, adolescentes, adultos, idosos - que tinham a casa apenas como dormitório. Sim. Casa-dormitório.
Muitas pessoas “estão” em casa. É imperativo e elas não sabem o que fazer e como fazer. Seu desconforto é visível. São pessoas de todas as idades que passavam seus dias ou no trabalho, na escola (integral) ou de dois turnos em grande parte da semana, ou na Universidade. Enfim. Pessoas que, às vezes, davam uma “passadinha em casa” ou que almoçavam, lanchavam, jantavam, conviviam, amavam, namoravam e viviam “fora” de casa.
Essas pessoas, salvo exceção, diziam que “amavam chegar em casa” depois de um longo e cheio dia, de muitas horas na rua, no trabalho, na escola, na Universidade....
Desse modo, experimentavam aquilo que Bachelar chamou a “ maternidade da casa”. “Por que a casa é nosso canto no mundo. Ela é, como se diz, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (BACHEHAR, 1993, p. 24).
Para ele, a casa é o lugar “dos valores de intimidade” e, também, “uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos” (p. 26).
“Na vida do homem, a casa afasta contingências (...)
Ela mantém o homem através das tempestades do céu
e das tempestades da vida (...) É o primeiro mundo do
ser humano. Antes de ser “jogado no mundo”, o homem
é colocado no berço da casa” (p. 26).
Os hábitos, vêm de habitar.... Sem a casa, “o homem seria um ser disperso”.
A casa não é somente uma “caixa inerte”, ela transcende o espaço geométrico...ela é lugar de convivência e solidão, de festa e choro, de dor e alívio, de proteção ou insegurança, enfim.
Mas eis que chega a quarentena....
Se uma parcela grande da população, sonha com a quarentena e vê na casa um oásis no deserto e não podem estar lá (pois os patrões não permitem afastamento, muito menos remunerado (propondo, no máximo férias compulsórias sem salário) e, outra parcela sequer cogita poder estar em casa, por trabalhar em serviços essenciais – para muitos, a quarentena é um tempo de angústia e incertezas.
Eis que a casa na qual se refugiava à noite ou nos fins de semana, não é a mesma agora que temos de habitar. Então, a casa que era lugar de refúgio, descanso, aconchego, transforma-se. Sua gramática é alterada: lugar de trabalho, de estudo, de lazer, de tédio, e convivência (nem sempre “harmônica” ) ou de isolamento. Home office, home aulas AD.
Muitos falam da “dispersão” em casa, “impossível de trabalhar, estudar ou produzir”. “Não tem clima”, “ não tem privacidade”.... Muito do que se costumava fazer “fora” de casa, agora tem de ser feito “dentro” .
O ambiente de trabalho ou de estudo que, para muitos, era lugar de respiro, de bons encontros, de realização profissional e pessoal, se esvai. Para alguns, isso é “ enlouquecedor” ou fonte de ansiedade e tensão.
Muitos se assemelham a elefantes, numa loja de vidro...têm seus gestos e movimentos restritos, sua fala, caçada.
Inúmeros são os significantes que circulam em volta da casa: “confinamento”, “prisão”, “reclusão” ... “ Estou aqui confinado (a)”, “estou preso (a). A casa deixa de ser lugar de moradia, para ser lugar de confinamento, isolamento, reclusão, mas também de proteção, resguardo.
Para muitos, a solidão se avoluma. Muitos que sofriam com o “ninho vazio” e deixavam a vida em suspensão contando os dias de visitas de filhos e netos, não podem recebê-los, pelo risco de contaminação.
Para outros, porém, a reclusão social é uma dádiva. Há uma justificativa concreta para não sair, não conviver, não ter de se haver com o outro que é diferente e, muitas vezes, fonte de mal-estar.
Aquelas pessoas que nos auxiliam e ajudam a vida a ficar melhor: boys, entregadores, passam a ser também temidos e nocivos. Nos damos conta de que não estamos tão protegidos assim....Nossa casa não está impermeável ao vírus que pode chegar com os alimentos, com os filhos, os netos....
De lugar onde se tinha liberdade, a lugar de exílio. Sim, exílio.
Estar em casa por escolha, pelo desejo de “curtir” ou de “dar um tempo”, não tem nada a ver com a reclusão e isolamento social impostos por uma pandemia. Poderemos falar dos efeitos subjetivos dessa reclusão, posteriormente, com mais atenção.
Frei Beto[3] relembra hoje o tempo da ditadura no qual ficou recluso e preso “em celas solitárias” e dá “10 dicas para enfrentar esse período de reclusão forçada pela pandemia”.
E diz, dentre outras coisas: “ Não banque o passageiro que fica o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem”. E ainda adverte: “Na prisão, nada pior do que um advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa”.
Para nós, se a viagem em casa será longa ou não, sabemos que o melhor é viver um dia de cada vez. Reinventar o espaço e nosso lugar, nosso modo de relacionar, de ser e viver. Pode ser surpreendente. Podemos nos tornar mais humanos do que somos...ou não?
Por mais adversidades que cada um encontre em casa, por maiores que sejam as dificuldades e problemas, importa agora construir um jeito próprio e melhor de viver essa reclusão, sem isolamento ... (e só.. lamento....), pois mais que nunca, nossa casa, nossa vida!
[1] Termo utilizado por Antônio Carlos Gomes da Costa para referir-se aos chamados “meninos de rua”. [2][2] Ver: FERREIRA, Tânia. As crianças e o trabalho: Nos bastidores da Favela, da Tv e do Cinema. Tese de Doutorado, FaE/UFMG. [3] https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-serviço/dezdicas-para-enfrentar-reclusão-em-tempos-de-pandemia.
Comments